(Freguesia da Golpilheira • Concelho da Batalha • Distrito de Leiria)
 
>Tradições extintas… • A serração da velha

>Tradições extintas… • A serração da velha

>Recolhas de Alberto Gomes de Sousa

A Serração da Velha (que o povo pronunciava como “sarração”) tinha lugar na quarta-feira da terceira semana da Quaresma.
Sendo a Quaresma uma quadra litúrgica de austera penitência e, na generalidade, pelo povo observada, não se compreende bem como é que a interrompia, para se dedicar a festanças e folguedos lúdicos, pagãos quanto o eram os do Entrudo. É que não tenhamos dúvidas! A serração da velha era a sequência das cegadas, chacotas e chincalhadas entrudescas, práticas muito da preferência da mocidade masculina solteira, que proclamava mesmo o Entrudo como seu rei, como de ajuíza por estes motes:

Já morreu o santo entrudo
Que era o rei da mocidade
Mal empregado rapaz
Que morreu na flor da idade

Que morreu na flor da idade
Nada da vida gozou
Durou domingo e segunda-feira
E na terça se finou

E na terça de finou
Lá vai ele a enterrar
Coitadinho do entrudo
À Quaresma deu lugar

Da serração da velha faziam parte as cantigas de porta a porta, como eram, igualmente, as do cântico das “Almas Santas”, as únicas que conhecemos de tipo religioso na nossa freguesia (Maceira), e que tinham de ser cantadas até à terça-feira da segunda semana da Quaresma. Por esta regra se deduz que a austeridade quaresmal só era tida em conta até meados da quadra, e isto a julgar pelo provérbio bem conhecido: “No dia de S. José, já se bate o pé”. Ou ainda por estes motes igualmente muito conhecidos no meio popular de então, e que faziam parte da característica dança “A moda do Bate-o-Pé”.

No dia de São José
Já a gente vai “bailhar”
A moda do bate o pé
Sem a Quaresma passar

A moda do bate o pé
Que bonita “Qu’ela” é
Quando tu “bailhas” comigo
No dia de São José

Se assim se procedia na realidade, não temos conhecimento documental, em que nos possamos apoiar. Mas quando o povo criava, era para praticar. Ou será que neste caso se fugiria à regra? Ficamos na dúvida!
Em princípio, a serração da velha foi criada pelos rapazes solteiros, para serrar (ou “sarrar”) as velhas solteironas, cuja idade de se casar já havia há muito passado. Tinham os moços muita gana a estas mulheres, pois se viam na pele dos rapazes do tempo delas, que quando muito se não quiseram casar, ao menos outra coisa… quisessem fazer. Mas é que nem essa coisa… É que estas mulheres se auto-proclamavam virgens, de pensamentos, palavras e sobretudo de acções, afirmação em que os moços não acreditavam redondamente. Daí que o sentido dos motes às ditas cantados eram em parte à volta deste assunto, empregando – já se vê – a imprescindível ironia em que predominava a dúvida, o que motivava as visadas a barafustar e, por vezes, até à ferocidade, podemos dizer. Mas não se julgue que os endiabrados foliões se ficavam por estas vítimas. Assim, havia três tipos de serração:
– Serração das velhas solteiras, cuja idade de casar já havia passado;
– Serração das velhas viúvas;
– Serração das raparigas solteiras em idade de casar ou das que ainda não namoravam.
Comecemos, então, pelas “velhas solteiras”:

Esta velha muito velha
Vai dar bem boa madeira
Tem a resina toda
Ninguém lhe pôs a pingueira1

Vou já buscar esta velha
Que preciso de a “sarrar”2
Para ter forro de cerne
P’ra o rodapé do altar

Ó velha já muito velha
De ti não vou ter mais dó
Vou-te abrir a ferida
Até ao cabo da inchó3…

Velha linda e airosa
Na “taubinha”4 da lareira
Vou-te “sarrar” a tranquinha
P’ra “mensa”5 da cabeceira

Não tenhas medo velhota
Da folha do meu “sarrote”6
Eu vou “sarrar” com jeitinho
Ao fundo do teu cangote7

“É’la”8 velha mais bonita
Ó meu potinho de mel
Deixa “sarrar” aduelas
P’ra eu fazer um tonel

Velha maldita tão feia
Que mamaste sem dares mama
Não te quiseste casar
P’ra não ter homem na cama

Esta velha está viva
Mas logo vai ficar morta
Assim que eu lhe “sarrar”
A balança da picota9

Velha feia encarquilhada
De marreca e cangote
Vais já me dar as “taubinhas”
Para pôr em riba o “bispote”10

Madeira não resinada
Deixa tirar a resina
Com o biquinho do ferro
Agarra aqui na “terrina”11

Não te escapas tu velhota
Da inchó do resineiro
Nem de me dares uma falca12
Para eu fazer um maceiro

Vou-te “sarrar” ó velhota
Os melhores arrebentões
E quer o queiras quer não
Vou-te tirar três piões

Velhinha cheia de musgo
Branco como o algodão
Dá madeira carunchenta
P’rás tábuas do teu caixão

Anda cá velha santinha
À serra do “sarrador”
P’ra dares quatro forcados
P’ra descansar o andor

Velha suja mal cheirosa
Feita de negra madeira
As tuas tábuas só servem
P’ra fazer a peniqueira13

Velha de beiços tão grossos
Como bordas de alguidar
Quem me dera dar-te um beijo
Depois de serra os “sarrar”

Tens os olhos remelosos
És a rainha da remela
Mas ainda serve a madeira
Para escavar uma gamela

Estamos em presença de um poemeto deveras singular, em que à mistura há cantigas de sentido altamente vexatório, sem esquecer sentido ribaldo, bem como as de mangar ou surrear ou até mesmo de bem-dizer. Em quaisquer destes tipos de cantigas, está relacionado o destino a dar à madeira “sarrada” das velhas…

Notas
1 Púcaro que se coloca no pinheiro.
2 Serrar
3 Machada
4 Tabuinha
5 Mesa
6 Serrote
7 Zona occipital, do pescoço ao ombro.
8 “És a”
9 Aparelho para tirar água.
10 Penico
11 Vaso
12 Tábua
13 Penico

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