(Freguesia da Golpilheira • Concelho da Batalha • Distrito de Leiria)
 
>Histórias actuais da Paixão

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>Do sofrimento à Páscoa

“Parece um Cristo vivo” é uma expressão que o povo usa frequentemente para falar de quem está em grande sofrimento, padece de doença crónica ou foi vítima de acidente grave.
A expressão estabelece um paralelismo quase “visual” com a imagem que nos habituámos a contemplar, sobretudo nos cenários do Tríduo Pascal, de um Cristo sofredor, flagelado, carregando a cruz pelo monte Calvário e, depois, nela pregado, trespassado e morto. E o facto é que o paralelismo tem, tantas vezes, pleno sentido e significado. Salvas as devidas distâncias em relação ao sofrimento e morte a que o Redentor se sujeitou livremente, por amor, para nos salvar e conduzir ao Pai, também encontramos quem padeça hoje da mesma forma atroz, às vezes sem ânimo para continuar o percurso doloroso da vida, sem esperança de uma meta no horizonte, só com a luz negra da morte a pairar ao fundo do túnel que se fecha na sua frente. Quem, tal como Jesus, já só tenha forças para gritar, por vezes já sem voz… “Meu Deus, porque me abandonaste?”.
Nestas condições – “que podem calhar a qualquer um de nós”, como também diz o nosso povo – o modo como cada um reage pode ser muito diverso. Há quem se revolte contra a sorte, contra o mundo, contra familiares e amigos e, até, contra Deus. Há quem se resigne na amargura do seu fado e desista de lutar. Há quem se vá agarrando ao que pode para encontrar a solução, desde a medicina aos cultos e ocultos. Há quem fixe a sua luta na espera de um milagre que, de modo mágico e maravilhoso, venha trazer-lhe a libertação.
Curiosamente, também há muita gente que consegue encontrar na fé em Jesus Cristo a luz para continuar a estabelecer o paralelismo com a Sua Paixão, muito para além do sofrimento e da dor. Porque a Páscoa de Jesus não terminou no Calvário; foi uma passagem do sofrimento à alegria plena, da humilhação à glória celeste, da morte humana à vida eterna. A dor, a tristeza e, mesmo, a revolta, sentimentos naturais e legítimos de quem sofre, são, assim, ultrapassados pela fé e pela esperança que se alimentam do próprio Ressuscitado.
Tal atitude resulta numa entrega a Deus, que não é passiva, mas também não espera milagres espectaculares. Por um lado, aproveita todas as ajudas que a medicina e as ciências humanas podem oferecer para resolver o problema e mitigar a dor. Por outro lado, coloca a própria existência nas mãos de Deus, com a confiança de que “se quiseres, podes curar-me”, mas com o espírito de quem está pronto para receber qualquer que seja a dádiva do Seu amor. Tal como Jesus, na hora derradeira: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.

Exemplos vivos
Para conhecermos mais em concreto esta realidade, quisemos ouvir de viva voz o testemunho de quem carrega hoje essa cruz. E também daqueles cuja missão é serem os “cireneus” dos tempos modernos, os que ajudam os outros a levar essa cruz, tentando minorar a sua dor, procurar a sua cura e aliviar, nem que seja com um sorriso, o peso dessa mesma cruz (ver testemunhos abaixo).
Fomos visitar o Centro Hospitalar de Nossa Senhora da Conceição, na Batalha, uma das mais modernas unidades de cuidados continuados do País, inaugurada no passado mês de Novembro. Ali estão internados cerca de 30 doentes, uns em recuperação, outros a receber tratamentos paliativos para doenças terminais. Estão ao cuidado de quatro médicos, nove enfermeiros e 15 auxiliares, para além de um grupo de voluntários.
Maria Alice Neves, de 63 anos, natural das Colmeias, foi a primeira a chegar a este novo hospital. Desde os 40 anos de idade que se viu atingida pela doença, mas foram os últimos dez o seu “maior Calvário” na luta contra várias manifestações de cancro. Submeteu-se a diversas cirurgias e a múltiplos tratamentos, já esteve em situação crítica, ligada a uma máquina, sem conseguir ver, ouvir e falar. Recuperou algumas faculdades, mas continua acamada desde há quatro anos e quase não consegue mexer-se. Embora não sinta grandes dores, sabe que o seu mal dificilmente terá solução. Conta com o apoio e carinho da família, mas nem esse é como desejaria, pois o marido também está acamado em casa, acompanhado pela filha.
Ao falarmos com ela, a simpatia, o sorriso fácil, a boa disposição são quase desconcertantes. Apesar da caminhada de sofrimento que marca a sua vida, revela serenidade, paz e coragem para enfrentar cada novo dia. “Deus Nosso Senhor é que sabe, seja o que Deus quiser”, responde Alice quando lhe perguntamos como se sente ao pensar no futuro. É na sua fé que encontra a força para esta atitude. Gostaria que as coisas tivessem sido diferentes, mas não foram. Resta-lhe “rezar todos os dias por mim, pelos outros doentes que aqui estão e pelos funcionários, que são muito nossos amigos e simpáticos”, remata.
Paula (nome fictício) não quer revelar o nome, nem o rosto, de aparência bem mais jovem do que a sua idade. “Fale antes das pessoas que encaram a vida com optimismo, porque assim é que devia ser e elas é que têm razão, mas eu não consigo”, confessa. Foi apanhada por um AVC que lhe roubou a vitalidade, a energia corporal que cuidava com regularidade e a independência de acção que sempre prezou. Mulher de fé, catequista quase toda a vida, ensinou aos filhos os valores cristãos e continua a acreditar neles e a rezar diariamente pela sua cura. “Agarro-me à fé para tentar superar esta limitação, tenho vontade de voltar a andar, mas a dor é mais forte e não consigo aceitar que isto me tenha acontecido”, lamenta-se, deitada na fisioterapia onde tenta a custo recuperar os movimentos perdidos. Tem o apoio da família, sobretudo dos filhos que lhe dizem que a querem ver de novo a andar, mas “às vezes acho que não vou conseguir”… e deixa escapar um lágrima de dor, de desgosto e de frustração. Depois, recompõe-se e começa a ginástica. Deixamos o nosso voto de coragem. “Vamos a ver..”, sorri.
Também vítima de um AVC repentino e sem sintomas anteriores, no Natal dos seus 44 anos, Maria Rodrigues Marques, natural da Memória, rasga o sorriso para dizer que confia plenamente na recuperação e ainda quer “ir a Fátima a pé”, como prometeu a Nossa Senhora na hora de maior aflição. Está feliz por ter encontrado esta instituição, com pessoas tão boas a tratar dela, o que é “uma grande ajuda, depois de ter saído do Hospital de Leiria a chorar”. Com optimismo renovado e coragem para “voltar ao que era”, encara cada dia como uma nova luta para esse objectivo e sente que “já falta pouco… o braço esquerdo é que está mais preguiçoso”.
Com a mesma esperança vive Miguel José Bernardo, de 72 anos, residente nos Parceiros. Há dois meses em recuperação, confia na sua força de vontade, até porque o médico lhe deu essa pista de cura: “você é que tem de ser o seu médico”. Não sente dores, está a ser “bem tratado”, tem o apoio dos familiares “que não faltam aqui a dar-me força”, pelo que vê com optimismo o seu futuro fora do hospital. “A fé também ajuda a gente e vou à missa quando posso”, afirma.

Por uma luz libertadora
Chega a hora de almoço. Olho em redor, antes de me despedir dos muitos utentes que se passeiam com desenvoltura ou em cadeiras de rodas pelo amplo espaço de convívio, de cores alegres, cheio de luz e de transparência. Ainda cheira a novo, com brilho semelhante aos sorrisos de quem está por ali de serviço. “Isto é tão bom, que até vai dar pena sair de cá”, confessava uma doente. Sente-se que esse ambiente, esse tratamento humano, é uma das peças fundamentais para o bem-estar evidente da maioria dos internados.
Mas nem todos revelam a mesma cara alegre; há rostos mais vincados e há os que não conseguem esconder a marca de uma vida já perto do fim, confinados a uma cama articulada. Sente-se que ali, como em tantos outros lugares semelhantes ou em tantos lares pelo mundo fora, há quem viva hoje, na carne, a experiência viva da Paixão.
E sente-se que o nosso dever de humanidade e, ainda mais, de cristãos é contribuir, ainda que com o gesto simples da mão que oferece um carinho, para que aqueles que estão mais mergulhados na escuridão do desespero possam vislumbrar um raio de luz libertadora. Para que, na medida do humanamente possível, possam fazer o percurso vitorioso do sofrimento à Páscoa. Tal como Jesus, na hora da salvação: “Eu sou a ressurreição e a vida, quem acredita em Mim terá a vida plena”.
Luís Miguel Ferraz

“Todos precisamos de atenção e amor”
Neste hospital, todos os que nele trabalham têm consciência da citação de Olivier Holmes (médico francês do século XVI): “O objectivo da Medicina é curar às vezes, aliviar frequentemente, confortar sempre”. O doente é um ser humano, é uma pessoa, é um ser moral, é um ser com dignidade, não se medindo em termos económicos, mas estes devem estar ao serviço do doente, pois este é o valor supremo.
A medicina contemporânea enfatiza a cura e o prolongamento da vida e depois, muitas vezes, negligencia o cuidado necessário ao fim da vida, abrindo caminho a uma quantidade de doentes, incapacitados, mal cuidados e em sofrimento, que aguardam o momento de morrer. É hoje exigida a utilização de tecnologia cara e nem sempre ajustada à situação do doente que, com o fim à vista, vai sendo submetido a tratamentos que o mantêm vivo durante algum tempo, normalmente com sofrimento, dor, solidão e angústia. Por estas razões, os exames complementares deverão ser apenas os estritamente necessários, perfeitamente claros e, se possível, sem aumentar a dor e ou o incómodo para o doente.
Vivemos numa cultura e num tempo em que é suposto haver “um medicamento para cada sofrimento”, o que determina expectativas – quer dos doentes, quer dos familiares, quer dos médicos – de que em cada consulta ou visita médica deverá ser prescrito novo medicamento. Consequentemente, os médicos podem sentir dificuldades de impor limites.
Nestes doentes, na maioria idosos, sofrendo de pelo menos cinco doenças e múltiplos medicamentos, com elevados custos para a sua mísera reforma, associados a interacções medicamentosas e ao aparecimento de complicações e outras doenças iatrogénicas [causadas pelos medicamentos]. Devemos ter o bom senso de tratar sempre a doença de maior risco de vida ou que cause maior sofrimento, pois tratar tudo em simultâneo é impossível. Muitas das vezes, o que custa não é saber o que fazer, mas decidir o que fazer e não fazer, lembrando-nos sempre de que, em primeiro lugar, será não fazer mal – “primum non nocere”.
Assim, os medicamentos prescritos deverão ser apenas os estritamente necessários, mas nunca nos devemos esquecer do tratamento adequado da dor. Prevenir e tratar a dor é um imperativo ético, uma condição inalienável dos cuidados de saúde, associada a uma diminuição das complicações clínicas e até da mortalidade.
Todos precisamos de atenção, de amor e de uma interacção com os outros seres humanos, pois sem relacionamento não somos nada. Toda a equipa de saúde que nesta instituição trabalha sabe que tem sempre um remédio no bolso, disponível a qualquer hora e a qualquer momento – o seu sorriso.
Como dizia Confúcio, “ama aquilo que fazes e não terás de trabalhar mais na vida”. E relembrando Madre Teresa de Calcutá, “a falta de amor é a maior das pobrezas”. Todos nós estamos imbuídos destes ideais, que em conjunto com entusiasmo, dedicação e esforço, usamos para contribuir para o bem-estar físico, psíquico e social dos doentes que nos procuram.
José Leite, Director Clínico do CHNSC

Assistimos a verdadeiros milagres”
A ciência evoluiu, a esperança de vida aumentou, a taxa de natalidade diminuiu, e a sociedade depara-se hoje com a incapacidade familiar de assistir duma forma contínua e capaz dos seus progenitores.
As Unidades de Cuidados Continuados (UCC) surgem precisamente com o objectivo de tratar e cuidar daqueles cujas capacidades estão diminuídas, quer pela velhice, quer por outras doenças que lhes possam ter retirado, temporariamente ou definitivamente, a capacidade de se cuidarem sem ajuda de outra pessoa. Importa salientar que na medicina, o grande objectivo é “tratar”, enquanto nos cuidados continuados a finalidade principal é o “cuidar”, mesmo quando já é impossível “tratar”.
O trabalho que fazemos nesta UCC do Centro Hospitalar Nossa Senhora da Conceição, integrada numa rede nacional, é sobretudo esse de colaborar num dever da sociedade em apoiar no tratamento, na reabilitação ou manutenção da saúde, na procura de garantir o bem-estar físico, psíquico e social a todos os doentes que aqui passam.
Conscientes do sofrimento que envolve estes doentes e suas famílias, tentamos de uma forma digna e humana, em equipa multidisciplinar, recuperar as capacidades perdidas, mesmo que estas já sejam pequenas. O nosso empenhamento, na medida do possível, é devolver às pessoas o bem-estar, o alívio da dor e a sua recuperação.
Embora estejamos ainda no início de uma caminhada de aperfeiçoamento na prestação de cuidados continuados, fazem já parte da história desta unidade algumas situações que ficarão para sempre na nossa memória e no nosso coração. Quer pelo sucesso alcançado, quer pelas lições de vida que quase todos os doentes diariamente nos transmitem, pelo modo como enfrentam o seu contínuo sofrimento e pela coragem e alegria de viver que demonstram em cada dia que passa, tendo sempre esperança no amanhã.
Lembro o exemplo de um doente que veio logo no início, tetraplégico após ter sofrido um tétano, sem capacidade para andar, para comer ou para falar, com poucas garantias de recuperação. A força que revelou, a esperança e a vontade de recuperar foi tão grande que, passados dois meses, saiu para sua casa a andar pelo próprio pé. Já nos visitou depois, cheio de alegria e grato pela experiência que aqui viveu.
São estes verdadeiros “milagres”, de quem passa pelo calvário da dor e da doença e depois volta a conseguir ter uma vida nova, que nos dão alento para o trabalho que abraçamos diariamente. É essa a razão da “pequena” ajuda que lhes podemos oferecer.
Graça Pereira, Enfermeira Chefe do CHNSC

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