Por Saul António Gomes
“Abriu em pedra o grito imenso do seu peito
Tornou arquitectura a épica ansiedade!”
João de Barros, poema “O Povo”,
in Vida Vitoriosa (1919)
O uso da palavra, por mim, nesta ocasião tão solene em que comemoramos o seiscentésimo vigésimo quarto aniversário da Batalha Real de Aljubarrota, justifica-se pelo amável convite que me foi dirigido pelo Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal da Batalha, o qual penhoradamente agradeço.
É convite honroso que não poderia declinar, mas para cujo cumprimento não possuo o saber, sequer a arte e a inspiração de bem escrever que se exige para perorar sobre o acontecimento histórico que nos reúne neste lugar. Substitua, no entanto, a árida palavra do historiador o verso elegíaco do poeta.
Este é o alvo templo da memória portuguesa, em cujo seio, no silêncio finito que se respira nesta Capela do Fundador, no passar dos dias que são séculos, nos confrontamos permanentemente com a questão pátria, com a questão do sentido, ontem e hoje, da pátria portuguesa, no tempo histórico mas também cósmico que Santo Agostinho procurou aprisionar na metáfora dos três presentes: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro.
É sobretudo em torno desses dois presentes, o presente do passado e o nosso presente que gostaria de incidir nesta breve alocução ou elegia que tenho o privilégio de proferir perante vós.
Reis e ínclitos infantes repousam nesta Capela cujos nomes a História não esqueceu nunca e que todas as gerações de portugueses sempre aprenderam a recordar e a venerar. A alguns destes príncipes de Portugal devemos monumentos literários fundadores da própria língua que é a primeira pátria em que nascemos e somos educados. D. João I, D. Duarte, o Infante D. Pedro valorizaram prioritariamente o português como língua de criação artística e, no seu perfil de habitantes de uma Europa que cultivava as humaniores litterae, nunca sobrepuseram à palavra portuguesa a declinação latina.
Importa confessar, ainda, que o elogio das armas portuguesas que derrotaram a soberba castelhana naquela distante tarde de 14 de Agosto de 1385, e que este monumento comemora como o mais importante legado patrimonial justamente dedicado à preservação da memória desse feito e ao enaltecimento de Portugal, mereceram já a outros escritores páginas soberanas. Muitos desses escritores, curiosamente, nada dizem acerca deste monumento e do seu significado, mas outros houve que o fizeram, assim equilibrando o saldo da memória de um feito histórico, entre o crédito da recordação e o débito do esquecimento, sobre o qual D. João I, o rei da Boa Memória, e seu filho e sucessor, o Eloquente, como também os Infantes D. Pedro — “Príncipe no mundo raro! / Sobre tanto desamparo, / foram três seus filhos reis.”, Sá de Miranda) — e D. Henrique, tudo fizeram quanto estava ao seu alcance para que não fosse nunca esquecido.
Para todos nós, que aqui nos congregámos, neste que é o mais predestinado lugar do encontro dos portugueses com a sua própria História, comemorar o dia 14 de Agosto poderá ser um acto de cidadania e de afirmação de identidade. É-o efectivamente. Mas, olhando o Portugal que ficou lá fora, aquele que não comemora e vê maçada no espírito histórico, aquele que ignora e que não sente já a luminária do exemplo dos antepassados, esses portugueses a banhos que não são já os filhos de marinheiros desnudos e de lavradores pobres que dominaram os mares nunca de antes navegados e construíram o mapa que desconheciam (“Navegavam sem o mapa que faziam” escreveu Sophia de Mello Breyner Andersen, Navegações, VI), olhando esse Portugal, dizia, ficamos com boas razões para duvidar do sentido propedêutico da comemoração histórica no País contemporâneo.
Cumpre reflectir, em verdade, as razões porque este monumento, no que comemora, parece tão esquecido e omitido na balança da actualidade portuguesa. Os profissionais da comunicação social de hoje, mormente nos grandes media televisivos, não possuem nem sensibilidade, nem o saber histórico essencial sobre o seu País. E, no entanto, Portugal é um dos países ocidentais com mais forte historicidade e sentido de nacionalidade ao nível de um ponto de vista popular. Não há tempo para exemplificar, mas parece-me significativo que em todos os grandes ciclos comemorativos que Portugal levou a cabo, após 1974, o Mosteiro da Batalha tenha ficado sempre ausente salvo parcas e envergonhadas referência de rodapé em painéis fotográficos e pouco mais.
Pergunto-me como é que é possível que se tenha chegado a este plano de desconhecimento e de ignorância. Aquele que é a barca memorial da identidade portuguesa, levantado para perpétua memória do feito da Batalha Real de Aljubarrota de 14 de Agosto de 1385, encontra mais eco na alma do povo simples e sem grandes estudos que por aqui passa, feitas as preces em Fátima, do que entre as elites académicas e os especialistas do património nacional que tudo decidem longe. Todo o português que o é, como escreveu Miguel Torga, devia, pelo menos uma vez na vida, peregrinar até este templo de brando calcário em que cintila a questão essencial do português: o seu ser e a lógica do ser português.
A geração de portugueses que fundou este monumento teve de fazer opções definitivas em situações de extrema adversidade e de crise política profunda. Falamos de uma geração de combatentes, de mancebos na casa dos vinte anos de idade chamados ao combate e à guerra, ao extremo sacrifício da própria vida por um ideal de soberania e de pátria. D. João I contava então 27 anos e o seu Condestável. D. Nuno Álvares Pereira, 25 anos. Nessa faixa etária e ainda na flor da adolescência estavam muitos outros soldados nas suas alas popularizadas como dos Namorados e da Madressilva. Pois bem, a esses jovens foi imperioso decidir entre viver ou morrer; entre viver num reino livre e independente da sujeição castelhana ou num solo sujeito a essa arbitrariedade. A questão, como referimos, era a da vida ou morte, a da “pátria ou morte”.
Em 2009 não parece haver qualquer contexto para a reposição da questão. Dar a vida, hoje, pela Pátria é uma questão que de todo não fica bem enunciar. E, no entanto, a época contemporânea está ainda cheia de memórias em torno dessa decisão última de qualquer homem: viver, sujeitando-se, ou morrer nas garras de uma luta heróica por ideais pátrios.
Em 14 de Agosto de 1385, o temor e o medo de uma morte iminente mostrava-se nos rostos dos combatentes portugueses, do “pequeno exército” que eram, tamanha a sua desvantagem face ao inimigo. Venceram na entrega total a uma fé e a uma ideia: a de que a razão estava do seu lado; a de que era neles e por eles que a lealdade portuguesa se honrava. Por isso deram tudo, pelas suas vidas, pelas suas famílias, pelo seu rei, pelo seu Reino. É possível que um lema usado pelos revolucionários cubanos, já em nossos dias, o de “Pátria ou morte”, seja aquele que melhor nos permite compreender o que ecoava nos pensamentos desses leais portugueses nessa tarde distante, toda ela vestida de fogo e sangue na terra almagre de S. Jorge, de 14 de Agosto de 1385. Pelo exemplo citado, creio, poderemos tentar compreender melhor o que motivava os nossos antepassados, a força vital de um ânimo que deitou por terra o estandarte inimigo.
Só uma forte consciência nacional explica a tenacidade, o tudo ou nada, o viver ou morrer que foram lema, consciência e ânimo vital que deu força e confiança ao pequeno exército português. Não acreditassem esses valorosos soldados num destino pátrio, encarnado num Rei e na liberdade sagrada de pertencer ao povo a sua escolha, e todas as estratégias militares teriam sido pouco mais que nada. Noutros momentos históricos, outras gerações de portugueses foram chamadas a fazerem opções semelhantes. Fizeram-no, por exemplo, na Guerra da Independência aberta em 1640, na Grande Guerra de 1914-1918 ou, já no nosso tempo, os nossos pais que combateram na Guerra do Ultramar.
Não era Portugal, em 1385, um mito, nem as nações, cumpre considerá-lo, se constroem sobre mitos. Os mitos são invenções culturais, as nações são construções geracionais. A continuidade de uma nação, naturalmente, necessita da garantir a transmissão da sua memória. O dever primeiro de um cidadão está na lealdade para com os seus e de todos para com a pátria que lhe é berço.
Lealdade, eis uma palavra que lemos na divisa que se repete mil vezes nas Capelas Imperfeitas. E nesta mesma Capela do Fundador, ecoam motes, lemas de vida, que não nos podem deixar indiferentes: “Pour bien” (D. João I), “J’ai bien raison” (Infante D. João), “Le bien me plet” (Infante Santo D, Fernando), “Talent de bien fere” (Infante D. Henrique), eis quatro delas onde o conceito de “bem” é central. Fazer bem, agir por bem, a razão do bem e o bem como razão, o talento de fazer bem e o bem. E outras memórias ressoam no silêncio destes muros como esse “Y me plet”, que lemos junto à efígie de D. Filipa de Lencastre, e o misterioso “Désir”, aberto no sarcófago do Infante D. Pedro, o autor do Livro da Virtuosa Benfeitoria.
Fazer e bem, uma vez mais, como mote de uma época onde os portugueses foram chamados a escolher e escolheram bem, o bem que lhes deu a vitória decisiva e que culminará na divisa desse Senhor do Mundo, el-rei D. João II, “Rei de muitos reis” (Sá de Miranda), que agia “pro lege et pro grege”, pela Lei e por Portugal.
Pouco adianta, como vemos, que a historiografia portuguesa hodierna reticencie a noção de pátria e que acentue que essa ideia de pátria era, em 1385, totalmente diferente da de hoje. Fica claro que não perfilho desta leitura porque, desde logo, os princípios pátrios são civilizacionais e intemporais, ou seja, não envelhecem, enquanto ideia e espírito, ainda que as gerações dos homens os possam observar com intensidades e debaixo de perspectivas diferentes no tempo e no modo de manifestação.
A força anímica que fez da Batalha o símbolo maior da identidade nacional e o panteão das gerações de ouro da Dinastia de Avis, aquela que impôs o Mundo à Europa e a desbloqueou para a modernidade e para a globalização que toca a todos os povos, sem excepção, nem sempre foi visível. Foi preciso esperar pelo Século XVIII e pela curiosidade de estrangeiros cultos que visitaram este Monumento para que Portugal voltasse a olhar para ele, considerado por alguns como construção maravilhosa, e magnífica, apreciado sobremaneira pelos ingleses e de tal modo, como se manifesta no legado de James Murphy, que nele se inspirariam para propagar no Reino Unido a seiva de um neo-gótico vitoriano de matriz batalhense.
Mas o Mosteiro de Santa Maria da Vitória atingiu o ano do fim, em 1834, exangue e a necessitar de obras de recuperação verdadeiramente profundas. Expulsos os frades e primeiros guardiães desta memória portuguesa, o edifício viu agravar-se o seu estado de decadência. Devemos a Luís Mousinho de Albuquerque, prontamente apoiado pelo rei D. Fernando II, a partir de 1840, em boa medida, a sua salvação.
A inteligência nacional oitocentista ignorou, sintomaticamente, este monumento. Excepção feita a Fr. Francisco de S. Luís, que lhe dedicou uma Memória histórica apresentada à Academia das Ciências, em 1822, na qual sublinha o carácter português do monumento, como excepção é, neste panorama, Alexandre Herculano que evoca o Real Mosteiro, no seu popular conto “A Abóbada”. Almeida Garrett, por seu turno, no seu poema Camões, renova o elogio da terrível Aljubarrota, mas silencia o seu monumento matricial. A Geração de 70 passou-o em silêncio, mesmo, e sobremodo, o seu historiador mais fecundo e brilhante, Oliveira Martins, a quem devemos as biografias de D. Nuno Álvares Pereira ou dos Filhos de D. João I, por cujas páginas, na sua primeira e melhor edição, o Mosteiro é apenas um filactério gótico sugestivo em desenho de ilustração de página de mudança entre capítulos.
Esse “País de suicidas”, como lhe chamou Miguel de Unamuno, inspirando-se em Manuel de Laranjeira, viveu pouco, creio, a memória patrimonial portuguesa. Refizeram os Jerónimos, descobriram, em boa medida graças a escritores e diletantes estrangeiros, o manuelino português, restauraram, como lhes foi possível, este monumento. Mas então, como hoje, este lugar maior da identidade nacional ficou esquecido. Eça de Queiroz, que viveu em Leiria, não o achou digno de qualquer nota significativa para além de uma fugaz carta postal daqui endereçada a um amigo. Elogiou-o, mas não sem lhe apontar um excesso sombrio sobre a arte da renascença em Portugal e de criticar asperamente as “restaurações” que sofria, Ramalho Ortigão (O Culto da Arte em Portugal, 1896), encontrando o monumento melhores páginas de valorização em Vilhena Barbosa (1886). Poucos mais nele atentaram e, entre os que o fizeram, sobressaem nomes estrangeiros (Beckford, Lichnowsky, Raczinsky, Haupt, Dieulafoy, Baedeker).
É preciso esperar por Afonso Lopes Vieira (Onde a terra se acaba e o Mar começa, 1940; Nova demanda do Graal, 1942), e ainda assim num país que o marginalizou e que enjeitou o melhor do integralismo lusitano, para que a poesia pátria se inspire neste templo da memória. Nem os neo-realistas, nem os existencialistas encontraram, neste mausoléu pátrio, inspiração digna de realce. Foi preciso aguardar por Miguel Torga (A Criação do Mundo, IV, 1939; Portugal, 1950) para o vermos entrar na grande literatura que em português se tece entre cujas laudas se impõem as que lhe dedica José Saramago (Viagem a Portugal, 1995).
E, contudo, foi neste Mosteiro que despertou a vocação de historiador de um Jaime Cortesão (Portugal: a Terra e o Homem), como foi na sua Sala do Capítulo, sob o olhar do esguio arquitecto que sonhou tão ousada abóbada, que, em 1922, o Presidente da República António José de Almeida confiou a este templo a guarda das ossadas dos Soldados que na Europa e em África combateram por uma Europa livre. Neste Mosteiro e no chão estremenho em que fundou os seus alicerces sólidos onde Torga descobriu, espantado, páginas maiores de uma História de Portugal que se guarda como coisa secreta dos portugueses.
Formulamos votos, e este é o monumento mais apropriado para propor um voto, de que o Real Mosteiro de Santa Maria da Vitória, no conteúdo simbólico que preserva, barca e arca da memória pátria, vença as muralhas de silêncio e de omissão a que tanto o têm sujeitado, num Portugal distraído dos seus princípios, aborrecido senão envergonhado, ao nível das suas elites bem-pensantes, quiçá, do seu passado em que se rasgaram novos mundos e se pagou o elevado preço dessa ousadia; num País em que o sentido da comemoração histórica, ensopada entre festivais de comes e bebes, apouca a dignidade do acto evocado e dispensa quase sempre o saber do historiador.
Não assim, Senhoras e Senhores, neste 14 de Agosto de 2009, neste altar cívico em que Portugal se consagra e os portugueses encontram, neste dia de hoje que é o presente do futuro, a razão de se ser uma nação livre e independente, renascida de uma opção extrema entre vida ou morte. Não pode ter sido essa uma questão vã e sem sentido.
Seja para os que caíram em 14 de Agosto de 1385, seja para todos aqueles nossos conterrâneos e antepassados que pereceram em todas essas outras tardes de Agosto, na Flandres ou em outro qualquer lugar, em que Portugal foi chamado a combater. Desde há vários séculos que este monumento proclama o bem português, numa só e única opção, sem desvios, num só coração, numa só voz e num só querer. Sem isso, não parece possível compreender o significado histórico deste Lugar de encontro em que, nesta hora já vespertina de 14 de Agosto de 2009, temos o privilégio de estar e de nos sentirmos, hoje como sempre, mais portugueses e orgulhosos de o sermos.