>Recolhas de Alberto Gomes de Sousa
Sobre esta ermida, temos em mão a fotocópia de um manuscrito que faz parte do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Com data do ano da graça de 1758, nas “Memórias Paroquiais” descritas pelo padre coadjutor Luís António Flores, sobre a freguesia de Pataias, lê-se no volume 28, a páginas 582:
“Tem esta freguesia uma capela, anexa com a invocação de Nossa Senhora de Victória, mui antiga, sujeita ao Reverendíssimo Cabido da Sé da cidade de Leiria com a frequência de romaria, e se lhe faz sua festividade, em Setembro, a qual capela se concebe desde a destruição da vila das Paredes, onde está situada, que em outro tempo foi mui populosa, com sua barra onde desembarcavam, porém hoje não se vêem senão alguns vestígios de paredes e algumas ainda em pé e muito arruinadas, esta fica junto à praia, e dista uma légua desta freguesia, para a parte do poente, em assento alto de onde se descobre, parte do mar oceano e a península da praia de Peniche e as Ilhas das Berlengas e Farelhão (sete léguas de distância) do dito sítio e por causa das muitas areias se destruiu a vila”.
O padre Flores nada diz quanto à era em que foi feita e ermidinha e bem assim no que toca à formação da vila das Paredes. Mas na região contavam as pessoas alfabetizadas mais velhas que a capela teria sido mandada construir por D. Fuas Roupinho, Primeiro Almirante da Frota Portuguesa, em acção de graças a Nossa Senhora da Vitória por ter vencido numa batalha naval, no hoje mar das paredes, os piratas que atraídos pela benignidade das suas águas e mimos de boca, chegavam a desembarcar, massacrando as populações do interior. D. Fuas, figura um tanto lendária, foi também Alcaide-Mor da vila de Porto de Mós, como promoção por a ter defendido e levado de vencida o rei mouro de Mérida, que lhe havia posto aparelhado cerco. Foi companheiro de armas de D. Afonso Henriques, de quem era irmão natural, isto é, não nascido de matrimónio. A este lutador está ainda ligada a lenda de Nossa Senhora da Nazaré, como também conta o padre Flores nas suas “Memórias Paroquiais”, à guarda da Torre do Tombo, onde assim está escrito no volume 28, a páginas 581:
“O quarto chama-se Mélvoa, que tem vizinhos trinta, maiores sessenta, menores dez. Tem sua ermida de Santa Maria Madalena perto do dito lugar, sujeita ao dito prior. Dista uma légua da freguesia. Perto deste lugar está uma mata de carrascos e pinheiros e penhascos de rochedo, chamada a “Mata de Paio”, donde saiu o veado que encantou D. Fuas Roupinho da vila de Porto de Mós, andando à caça, seguiu pelas matas de Pataias, quis este enganar ao cavaleiro, levando aos penhascos de Nossa Senhora da Nazaré, distância de duas léguas”.
Logo alguém disse que, a partir dos seus primórdios, Portugal foi sempre terra de Santa Maria, ainda que sob as mais diversas invocações. Daí a grande devoção dos portugueses à Virgem Mãe, honrando-a com as mais majestosas catedrais, até às mais humildes ermidas, pelo que Nossa Senhora da Vitória não fugiu à regra. A sua devoção não esteve desde sempre muito arreigada no meio popular, não só entre as gentes da beira-mar, como mais do interior. A sua festa era e ainda hoje é celebrada a 15 de Agosto – embora o padre Flores a concretize em Setembro, se é que não seja mesmo engano de quem fez a transcrição em que nos baseámos –, dia da sua Assunção ao céu em corpo e alma, dogma este definido por Sua Santidade o Papa Pio XII a 1 de Setembro de 1950. Note-se que, entre o povo, o mês de Agosto não era como tal conhecido, mas antes por mês de Nossa Senhora, razão esta que leva que as suas festas sejam levadas a efeito este mês, de preferência no dia 15.
Devia ser sobremaneira festiva, segundo nos contaram, a chegada dos peregrinos que se deslocavam das mais diversas maneiras. Tudo servia, desde os carros de bois às galeras tiradas por muares, animais de dorso, e sobretudo a pé, mas ainda outro transporte havia. Era o chamado comboio das matas, mais conhecido pelo comboiozico. Embarcava-se na Guarda Nova, até ao terminus da linha. Supomos que a viagem era grátis. Grátis ou não, quão bonita devia ser a travessia do frondoso pinhal em Agosto, com os cheiros balsâmicos da urze, da moita, do tojo, da carqueja, da murta, do rosmaninho, das camarinheiras, resina, etc.. É pena que tenha acabado!!!
Os peregrinos juntavam-se no largo fronteiro à capelinha, de modo a estarem presentes aquando do toque do sino, anunciando as vésperas ou vespertinas, ou seja, ao meio-dia solar do dia 14. Entretanto, entre as vespertinas e a missa do dia, assim chamada por a sua celebração ter lugar ao meio dia solar em ponto do dia 15, pagavam suas promessas e faziam seus pedidos de graças, acção esta que era antecedida pela visita à Senhora, que era a primeira cerimónia a fazer. Uns rezavam. Outros cantavam as loas, cada qual a seu gosto. As loas, de feitura puramente popular, eram de uma simplicidade cativante, mas que muito tinham a ver com a fé de quem as punha em rima, exaltando deste modo candidamente as glórias de Maria, como as que se seguem:
A Senhora da Vitória
Há um ano a esperar
Que cantemos as loas
E a venham visitar.
A Senhora da Vitória
Tem tudo sempre a seu gosto
Por isso tem a sua festa
Sempre a quinze de Agosto.
A Senhora da Vitória
Tem as paredes caiadas
E as lajes do alpendre
Com carqueja esfregadas.
A Senhora da Vitória
À fresca da mansa aragem
Reza pelos navegantes
Para terem boa viagem.
A Senhora da Vitória
Anda lá no seu pinhal
A apanhar “cachossa” verde
Para estrumar o quintal.
A Senhora da Vitória
Tem capela na ladeira
E atende a toda a hora
Quem falar com ela queira.
A Senhora da Vitória
De faces tão moreninhas
Já lá vem do “camarção”
De apanhá’las camarinhas.
A Senhora da Vitória
Seu menino vai deitar
Conta-lhe histórias de moiros
Que andam no alto mar.
A Senhora da Vitória
Uma vitória alcançou
Ao almirante D. Fuas
Que os moiros derrotou.
A Senhora da Vitória
Com cabelos cor de linho
Empoados de farinha
De lidar no seu moinho.
A Senhora da Vitória
Na manhã de S. João
Foi à fonte à água benta
Para cozer o seu pão.
A Senhora da Vitória
Por vezes tem de ralhar
A seu filho, o Deus Menino
Que lhe foge para o mar.
A Senhora da Vitória
É bonita e bondosa
Pedi-lhe uma laranja
Que me deu com uma rosa.
A Senhora da Vitória
Há muito que está na praia
Com os “peis” na água doce
Para lavar a sua saia.
A Senhora da Vitória
Tem tanta graça e doçura
Que a graça dá de graça
A quem n’a graça procura.
A Senhora da Vitória
Vamos ter que a deixar
Mas juremos nesta hora
De para o ano cá voltar.
Estamos em presença de oito parelhas de motes, talvez simbolizando as oito Bem-Aventuranças? Sim ou não, só o seu autor o poderia dizer. De qualquer modo, são de uma simplicidade a toda a prova, mostrando bem a fé que o povo tinha na Virgem Mãe, que a viu sempre, principalmente as mulheres, como uma dona de casa, quanto elas, fazendo as suas tarefas domésticas.
E note-se que as loas faziam parte da religiosidade popular, a que a Igreja nunca aderiu, embora as consentisse. Por este facto, o povo ao cantá-las não podia passar do arrebate da capelinha. Tinham de ser celeradas fora de portas. Era a primeira oração que os peregrinos faziam, logo ao chegar, bem como a última ao partir, como bem se ajuíza pelo sentido da primeira quadra e outrossim da última.
Note-se ainda as várias referências ao Menino Jesus, inspiradas naturalmente na imagem da Senhora que tem o seu Divino Filho ao colo (como consta da foto que ilustra o nosso escrito). Ainda hoje, na quinta-feira de Ascensão, a Virgem é visitada pelos povos da beira-mar, como Nazaré, Sítio e Pederneira, ligando naturalmente a Ascensão de Jesus com a Assunção de Nossa Senhora. Embora de festas diferentes se trate, o povo as relaciona com grande fé e consequente devoção. Que bem-hajam por conservarem tão belíssima tradição!
Quanto à festa do dia 15 de Agosto, ainda se mantém a tradição, embora com muito menos luzimento que outrora. Tomavam parte as gentes dos lugares já referenciados e sobretudo os de Pataias, que têm grande devoção a Nossa Senhora das Paredes, honrando-a com devotos e vistosos círios. As loas que ora publicamos, parece-nos que nos dias de hoje seriam bem aceites, mesmo que cantadas pelos ranchos folclóricos, devidamente indumentados, que com todo o respeito e veneração são capazes de o fazer. Para tanto aqui fica o alvitre. No que toca à música, que aqui não podemos reproduzir em pauta, estamos prontos a gravá-la para uso de quem assim o queira. Mais não podemos fazer.