Quando Vladimir Putin e a cúpula de poder que o apoia na Rússia decidiram invadir a Ucrânia, no passado dia 24 de Fevereiro, o mundo (quase) todo ficou em choque. Espanto, incompreensão, angústia, medo, revolta foram sentimentos mais ou menos comuns em todos os que viram pelas televisões ou redes sociais as primeiras imagens de uma guerra anunciada, mas que se esperava nunca vir a tornar-se real. Imaginemos, então, como ficaram aqueles que viram essas imagens nos seus telemóveis, enviadas por familiares e amigos que as estavam a gravar em directo nas suas cidades, nas suas ruas, nas suas casas…
Vamos “aportuguesar” os nomes próprios. Natacha Kravets, residente na Maceira, Mariana Prodyvys, residente na Marinha Grande, e Mariana Iatskanych, residente na Caranguejeira, foram três dessas pessoas, a quem os sons da guerra que assolou a Pátria distante soaram bem perto do coração. O primeiro pensamento foi o de oferecerem a ajuda possível aos seus conterrâneos que, esses sim, estavam a sofrer directamente a ameaça da morte e as consequências que logo se alastraram, desde a necessidade de deixar tudo e fugir até à escassez de alimentos, medicamentos e outros bens essenciais.
Foram estes os três nomes que surgiram num primeiro apelo à ajuda humanitária para enviar ao seu povo, que rapidamente se espalhou pelas redes sociais.
Além da nacionalidade e da amizade, une-as o facto de pertencerem à mesma comunidade da Igreja Ortodoxa Ucraniana que celebra a sua fé na igreja matriz da Batalha, cedida pela paróquia católica. Foi a essa porta que bateram e que logo se abriu para disponibilizar um espaço onde recolher os donativos: o átrio do salão do Centro Paroquial.
Onda solidária
No sábado, dia 26, pelas 18h00, Natacha Kravets e Ivan Lazarenko, residente na Marinha Grande, foram os primeiros a entrar naquele espaço vazio. “Bastava uma sala mais pequena; nunca vamos encher isto”, contam eles sobre o que sentiram naquele momento. Pouco depois, chegavam os primeiros sacos com roupas, depois alimentos, depois produtos de higiene, um pouco de tudo o que tinham pedido no apelo inicial. E o monte foi crescendo…
No domingo, logo após a manifestação pela paz que esta comunidade organizou em frente ao Mosteiro da Batalha, quando o Jornal da Golpilheira visitou o local pela primeira vez, o caos já estava instalado. Eram carros, carrinhas, camionetas a despejar caixotes e caixotes, sacos e sacos, fruto da solidariedade que vinha de toda a região desaguar ali, com destino à Ucrânia. “E agora, que vamos fazer?”, perguntaram.
A resposta veio com a mão-de-obra voluntária que entretanto chegava às dezenas. Era preciso começar a separar as ofertas por categorias, e depressa aquele átrio ficou cheio só com alimentos e produtos de higiene. As roupas passaram à triagem na longa varanda exterior do edifício e o palco do recinto transformou-se num verdadeiro cais de embalamento e carga.
Valentim Zaits, residente na Golpilheira e dono da empresa de camionagem “Vitória V8”, tomou a seu cargo a logística dos transportes, ligando a colegas e conhecidos em empresas do sector, que imediatamente ofereceram os seus serviços. Nas fronteiras, sobretudo na Polónia e na Hungria, foram garantidos os pontos de entrega, para que os bens chegassem aos refugiados e, quando possível, entrassem na Ucrânia pelos corredores de ajuda humanitária, em especial, através da Cruz Vermelha, que está a operar no local.
Mega-operação
E é aqui que se torna impossível continuar a escrever os nomes dos envolvidos na operação. Mais de uma centena de ucranianos de toda a região e talvez duas vezes mais portugueses acorreram a oferecer ajuda, com especial envolvimento dos escuteiros batalhenses e seus familiares. Os horários anunciados alargaram-se a quase tempo inteiro, de dia e de noite.
A notícia de que aqui estava bem assegurada a logística, fez com que a Batalha se tornasse num centro de distribuição quase a nível nacional, para onde afluíram as entregas de outros locais de recolha, de localidades como Porto de Mós, Marinha Grande, Fátima, Ourém, Tomar, Abrantes, Torres Novas, Cartaxo, Alcanena, Entroncamento, Alcobaça, Torres Vedras, Coimbra, Aveiro ou Portalegre. (Em Leiria há também um centro, mas com logística independente desta).
Uma semana depois, nesta noite de sábado 5 de Março, os números são expressivos: mais de 67 toneladas já seguiram em 5 camiões: dois de ucranianos que estavam de partida na passada segunda-feira; um da empresa Broliveira; outro da empresa Luís & Filipe; outro da empresa “Vitória V8”. E estavam mais 18 toneladas em carregamento no sexto camião, da “Ligação Veloz”.
Além disso, partiram mais 7 carrinhas, que viajam com maior velocidade, com cerca de 3,5 toneladas de medicamentos e alimentos para bebés. Foram dessas as primeiras fotografias da entrega no destino:
Há muitas empresas e instituições que os organizadores vão anotando, “ainda sem tempo para confirmar que não falta ninguém”, diz Natacha Kravets. Mas a gratidão exprime-se de lágrimas nos olhos, de dor pelas imagens que vai recebendo no telefone e de gratidão pela resposta de solidariedade que recebe do povo português. Cita de cor várias dessas entidades: Câmara da Batalha, Erofio, Reboques Sousa, Patrovitrans, Translégua, Panidor, Simplastic, Valdilisa, Justo, Leiriplás, várias farmácias. E a Creche Jardim Mouzinho de Albuquerque, da Paróquia da Batalha, que, com a empresa IMB, enviou uma carrinha para ir buscar crianças refugiadas. De Portalegre chega uma mensagem a identificar instituições a enviar ajuda: a Misericórdia, o Agrupamento de Escolas, a Câmara e a Junta de Freguesia de Gavião, bem como as juntas de freguesia de Margem, Belver, Comenda e Atalaia.
Campanha em Coimbra
Ganhou especial relevo uma campanha surgida em Coimbra, quando Natacha contactou uma amiga que conheceu em férias, Ana Filipa Sousa, enfermeira do serviço de Especialidades Cirúrgicas II do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Coimbra. Com a sua chefe, enfermeira Dulce Helena Carvalho, lançaram o repto sobretudo entre os colegas e conseguiram o apoio da Escola Superior de Enfermagem, do clube de futebol Académica de Coimbra, da empresa Medicinália Cormédica e de várias farmácias locais, bem como de muitos particulares.
Dentro dos muitos caixotes de roupas, alimentos, medicamentos e material médico que enviaram para a Batalha, rumo à Ucrânia, juntaram um “miminho” muito especial: desenhos de solidariedade, incentivo e carinho, feitos para as crianças ucranianas pelas crianças portuguesas do Jardim-de-Infância de A Previdência Portuguesa, do Colégio Rainha Santa Isabel e do Colégio de São José.
Associação “Batimento Veloz”
Este movimento inesperado obrigou os organizadores a consolidar a estrutura. Apesar de quase todos os custos serem suportados pelas empresas envolvidas, há quem queira fazer donativos para ajudar noutras questões logísticas, como a alimentação dos voluntários que ali estão quase a tempo inteiro. E também para poderem dar resposta a algum pedido específico de ajuda financeira.
Assim, foi constituída no dia 2 de Março a “Batimento Veloz – Associação Apoio ao Emigrante”, em referência ao bater rápido do coração, tanto pela ansiedade da guerra como pelo calor da solidariedade. Com sede na Golpilheira e quatro signatários, tem como fim principal: “promoção e desenvolvimento de acções de carácter humanitário e de solidariedade social, onde se incluem acções de intervenção social, cultural, recreativa, educativa e formativa, nomeadamente: a) apoiar os indivíduos e as famílias carenciadas a vários níveis, procurando intervir por via do encaminhamento social nessas carências e na sua prevenção; b) apoio a crianças e jovens; c) apoio à família; d) apoio à integração social e comunitária; e) protecção dos cidadãos na velhice e invalidez e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de incapacidade para o trabalho; f) promover a realização de acções culturais e recreativas; g) educação e formação profissional dos cidadãos; apoio à criação de emprego e incentivo ao empreendedorismo”.
Quem desejar oferecer a sua ajuda em dinheiro, já poderá fazê-lo por transferência bancária para o IBAN PT50 0045 5080 4035 3238 1039 4.
Caravana humanitária
A Batalha irá integrar uma caravana humanitária, na próxima terça-feira, onde se incluirá o camião que está a ser carregado agora, bem como um autocarro de 50 lugares para recolha de refugiados junto à fonteira na Polónia. Ao todo, para já, estão confirmados 3 autocarros, 1 minibus, 1 camião e 22 viaturas ligeiras, acompanhados por um diplomata e equipas de apoio com motoristas, socorristas, médicos, tradutores e alguns ex-militares para garantia da segurança.
Falámos com David Leal, batalhense que pertence à organização da iniciativa: “Estamos em contacto com a embaixada ucraniana em Portugal e iremos trazer os refugiados que conseguirmos transportar, sendo já cerca de 300 os confirmados por terem pedido asilo a Portugal ou por terem cá familiares”. O estatuto de caravana humanitária dá cobertura à acção, bem como o facto de o Estado Português ter declarado abertas as fronteiras para este efeito. “Temos também o acompanhamento da CPCJ e assessoria jurídica para tratar legalmente algum caso de menores que estejam sem familiares”, adianta este responsável.
Alimentos e medicamentos são prioridades
A ajuda continua a chegar, mas tem sido mais organizada a informação sobre as necessidades urgentes. A roupa já é mais do que suficiente. A prioridade, agora, é a alimentação, pois escasseia nas despensas e nas cadeias de distribuição comercial, bem como a medicação e material médico.
Mariana Prodyvys divulga a lista dos principais medicamentos que lhes são pedidos: paracetamol, nurofen, ibuprofeno, analgésicos, medicamentos para diarreia, ligaduras (de todo o tipo e tamanho), sacos para guardar sangue, cateteres, pensos de todos os tamanhos, ligaduras elásticas, toalhitas desinfectantes, compressas (todos os tamanhos, mas de preferência grandes), hemostáticos, betadine. E também material médico de reanimação: diclofenac, termómetros, tubos para traqueostomia, sistema de transfusão de sangue, sondas nasogástricas/orogástricas, luvas, filtros bacterianos, seringas (50.0-50; 20.0-500; 10.1-750; 5.0-500).
O único desejo é a paz
Durante a nossa conversa, Natacha Kravets atende mais de uma dezena de telefonemas. É preciso responder a muitas solicitações, resolver emergências, agradecer ajudas, orientar operações em curso. Tem sido assim de dia e de noite, com poucas horas de sono nesta última semana, movida pela adrenalina e pela ansiedade do que se passa lá longe e que sente tão perto.
Entretanto, recebe uma videochamada de Kiev. É uma prima que fala do medo, da destruição em redor, das bombas que vai ouvindo. Aproveitou um momento mais “calmo” para ligar. A meio, desliga as luzes de casa; diz que tem sido procedimento habitual ao chegar a noite, para que as habitações não sejam localizadas pela iluminação. Choram juntas, confortam-se mutuamente, confessam a esperança de que “o louco” desista ou seja afastado internamente. Porque vencê-lo sozinhos, não será fácil…
Mas não é a única… enquanto ali estivemos, vários ucranianos vêm mostrar vídeos acabados de chegar aos seus telefones, imagens de pessoas em fuga ou de outras a resistir como podem, mas sobretudo bombardeamentos, destruição e morte.
Chega o padre Juvenal, pastor desta comunidade. Traz alguma comida e inteira-se das novidades. Traz também roupa de trabalho; além das celebrações e orações, não deixa de integrar o grupo que separa materiais ou carrega caixotes. “Rezamos e confiamos em Deus, mas fazemos a nossa parte para minimizar a dor dos nossos compatriotas”, diz.
Todos estão nesta sintonia. “Esperamos que acabe rápido, mas não vamos desistir do nosso país”, diz Natacha. Assim, “esta operação humanitária vai manter-se enquanto for necessária ajuda e houver oferta de bens e donativos, bem como de voluntariado, uma colaboração fantástica que não temos palavras para agradecer”.
No entanto, o maior desejo – o único desejo – é claro: a paz.
Luís Miguel Ferraz